Maomé, uma biografia do profeta, de Karen Armstrong (Companhia das Letras, 2002, 335 p., tradução de Andréia Guerini, Fabiano Seixas Fernandes, Walter Carlos Costa), foi escrito em 1994, como uma resposta politicamente correta à fatwa decretada em 1889 contra Salman Rushdie, por este ter escrito Os Versos Satânicos.
Karen Armstrong, ex-freira católica britânica (de família irlandesa) parece que “viajou na maionese” quando escreveu este livro, e a editora também o fez, com a publicação no Brasil em 2002 (pós-11 de Setembro), e me pergunto como será que seria a obra hoje, em 2016?
(entrevista de Karen Armstrong a Paulo Daniel Farhat, na Folha de São Paulo, em 2002)
Primeira pergunta:
por que hoje em dia se usa sempre o termo “muçulmano” ou “islamita”. Ficou “feio” dizer “maometano”, como se fazia, no Ocidente, até a década de 1960.
Quem segue Cristo não é cristão?
Os seguidores de Lutero não são luteranos?
Os de Calvino não são calvinistas?
Os de Buda não são budistas?
Os de Confúcio não são confucionistas?
Os de Alan Kardec não são kardecistas?
Então por que dizer “maometano” hoje em dia é tido como ofensivo?
Islã significa submissão, e muçulmano “submetido a deus”.
Mas a religião é de Maomé, oras pois…
Já li outros trabalhos da senhora Armstrong (Buda – uma biografia, 2001, Editora Objetiva; Breve história do mito – Companhia das Letras, 2005; The Bible – the biography, Atlantic Books, 2007), e parece que a autora conseguiu não levar ao pé da letras as fontes utilizadas. Maomé, porém, não teve esse cuidado. Este sem dúvida foi o pior.
Na biografia de Buda, ela esclareceu um monte de coisas interessantes para destruir o mito. Sidarta Gautama não era um príncipe em um castelo, mas um aristocrata em uma pequena república (como mais tarde foi Veneza).
Na biografia de Maomé, ela recheia de situações poéticas e de êxtases para reforçar o visionário, reforça o tempo todo as lendas, como a do “velho que inundou a barba de tantas lágrimas, ao ouvir os versos recitados pelo profeta”.
Se o pequeno país de Sidarta era um descrito com termos adequados ao momento histórico, na biografia de Maomé Karen o coloca literalmente como um socialista que combateu o capitalismo de Meca! Usa mesmo essas palavras! Apesar de todo o tribalismo e sistema de clãs que ela repete em citar em cada página.
Ela coloca um saque a uma caravana como um acontecimento que demonstrou à seita que se iniciava a “revelação da vontade de deus – um princípio importante no monoteísmo histórico”, e páginas adiante compara as guerras tribais entre Medina e Meca com Moisés e a travessia do Mar Vermelho (e a morte dos egípcios).
No mesmo parágrafo, aponta que “se não se fizesse oposição militar a regimes tirânicos e repugnantes, o mal tomaria conta do mundo todo. Até os profetas, algumas vezes, foram compelidos a lutar e matar”… “em vez de ser uma religião dá a outra face, o islã luta contra a tirania e a injustiça”. – pois é, preciso comentar? Parece que o vírus da admiração dominava o cérebro da autora quando escreveu o livro.
A obra fala muitas vezes entre lutas entre judeus (sempre monoteístas) e os novos adoradores de um deus único. Parece admitir que isso é “uma sina do mundo”. E os muçulmanos sempre foram tolerantes com os judeus, até a fundação do Estado de Israel, segundo ela… Acho que Karen não sabe a história do califado almôada em Andaluzia, no século XII.
O “amor” que Maomé tinha por todas suas esposas (inclusive a menina Aisha, de 9 anos), e por todas as meninas, é tão lindo como dizer da admiração que o “pai do pacifismo” Gandhi tinha quando se deitava com crianças.
Karen afirma que
“O véu não visava rebaixar as esposas de Maomé, mas era um símbolo de status superior. … Mais tarde, outras mulheres ficaram com ciúmes do status das esposas de Maomé e exigiram que lhes fosse permitido usar véu. … Hoje em dia, quando algumas muçulmanas resgatam a vestimenta tradicional, não é porque sofreram lavagem cerebral de uma religião chauvinista, mas porque consideram profundamente gratificante o retorno às próprias raízes culturais. É também, não raro, uma rejeição da atitude imperialista ocidental.“
Curioso que, atualmente, a maioria das freiras católicas não veja o uso do hábito como sinal de orgulho. Menos ainda por parte da sra. Armstrong.
“O Corão ensina que a guerra é sempre abominável. Os muçulmanos nunca devem começar as hostilidades, pois a única guerra justa é a de autodefesa, mas, uma vez engajados, devem lutar com absoluta confiança para conduzir a luta a um final o mais rápido possível.”
Acho que a autora precisava ler mais os noticiários internacionais, e talvez reformular o livro.
Afinal de contas, se em 2002 ela ainda não tinha sequer tomado conhecimento dos ataques em Nova York e Washington, o que será que ela tem a dizer das guerras na Síria e no Iraque, dos ditadores muçulmanos, dos atentados em San Bernardino, Boston, Madri, Paris 1 e 2, Bruxelas, Londres, Nairóbi 1 e 2, Dar-es-Salaam, Moscou (Teatro Dubrovka), Bali, praias na Tunísia, turistas no Egito, e outros “pequenos detalhes”, como Boko Haram?
Segundo a ex-freira, a a culpa de termos uma visão oposta é da igreja católica.
Claro, é sempre ela a malvada que deturpou o pensamento da humanidade
(desde a pré-história, segundo alguns).
Reproduzo o último parágrafo do livro:
“O fato é que o islã e o Ocidente compartilham uma tradição comum. Os muçulmanos a reconhecem desde o tempo do profeta Maomé, mas isso é algo que o Ocidental não consegue aceitar. Hoje, alguns muçulmanos começam a se voltar contra as culturas do Povo do Livro que os humilhou e desprezou. Elas começam a islamizar seu novo ódio. A amada figura do profeta Maomé tornou-se central nos últimos embates entre os islã e o Ocidente durante o caso Salman Rushdie. Se os muçulmanos precisam, hoje em dia, de uma compreensão mais apurada de nossas tradições e instituições ocidentais, nós, no Ocidente, precisamos nos desvencilhar de nosso antigo preconceito. Talvez um bom ponto de partida seja a figura de Maomé, um homem complexo e apaixonado, que por vezes tomou atitudes para nós difíceis de aceitar, mas foi um homem genial e fumdpou uma religião e uma tradição cultural baseada não na espada – apesar do mito ocidental [e de tudo que foi narrado no próprio livro de Karen Armstrong] – e cujo nome, “islã”, quer dizer paz e reconciliação.”
Bem, em algumas páginas anteriores a autora relata os últimos dias do profeta, e da angustiante dor de cabeça.
Que pena que naquela época, e naquela região, não houvesse equipamentos para uma tomografia e outros exames, que fossem capaz de examinar o crânio que “trouxe mensagem de paz ao mundo”…
Em algumas parte do livro, Karen coloca o monoteísmo como uma necessidade “da evolução dos homens”, para sair do tribalismo.
Para mim, reforçou a fé no panteão de deuses de klingons, romulanos, wookiees (como Chewbacca), pois estou cansado desse antropocentrismo pobre de planeta que os alemães chamam de Erde.